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segunda-feira, 25 de junho de 2018

OS REFORMADORES E A LEI – VALOR, SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

OS REFORMADORES E A LEI – VALOR, SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS

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Introdução

Um elemento que certamente influenciou o pensamento tanto de Lutero quanto de Calvino acerca da lei foram as suas diferentes experiências de vida e de fé. Martinho Lutero (1483-1546) era um monge agostiniano há doze anos quando iniciou a obra da reforma. Até então ele praticara uma espiritualidade ascética, rigorosa, legalista, na tentativa de agradar a Deus e ser aceito por ele. Deus era visto como um ser justiceiro, implacável e irado. A compreensão da verdade bíblica da justificação somente pela fé teve um efeito libertador. Isso talvez explique a atitude um tanto negativa de Lutero em relação à lei.

João Calvino (1509-1564), por outro lado, era um humanista, e não um sacerdote. Ele não teve nenhuma crise espiritual profunda ou experiência dramática de conversão. Na realidade, a única coisa que ele disse certa vez sobre a sua experiência é que ela havia sido uma “conversão repentina”. Por outro lado, durante três anos ele estudou Direito em Orléans e Bourges (1528-31). Mas, certamente, a razão principal do seu interesse pela lei foi a sua profunda consciência da realidade da soberania de Deus, e da sua santa vontade.

1. Lutero e a Lei

A dialética entre lei e evangelho é ponto focal da teologia de Lutero, sem a qual não podemos entender suas idéias acerca de temas como justificação, predestinação e ética. O principal contraste que Lutero vê dentro da Escritura não é entre os dois testamentos, mas entre lei e evangelho. Embora exista mais lei que evangelho no Antigo Testamento e mais evangelho do que lei no Novo Testamento, não se pode simplesmente identificar o Antigo Testamento com a lei, nem o Novo com o evangelho. Ao contrário, o evangelho também está presente no Antigo Testamento, assim como a lei ainda pode ser ouvida no Novo Testamento. Na realidade, a diferença que existe entre lei e evangelho está relacionada com duas funções que a Palavra de Deus exerce no coração do crente, e assim a mesma Palavra pode ser lei ou evangelho, dependendo da maneira como fala ao crente.

A lei é a vontade de Deus, que se manifesta na lei natural, conhecida por todos; nas instituições civis – tais como o estado e a família – que expressam essa lei natural; e na declaração positiva da vontade de Deus na sua revelação. A lei tem duas funções básicas: (a) como lei civil, ela refreia os ímpios e proporciona a ordem necessária tanto para a vida social quanto para a proclamação do evangelho; (b) com lei “teológica”, ela desvenda ao ser humano a enormidade do seu pecado.

É nessa função teológica que a lei é relevante para o entendimento da teologia de Lutero. A lei é a vontade de Deus, mas quando essa lei é contrastada com a realidade humana ele se torna uma palavra de condenação e suscita a ira de Deus. Em si mesma, a lei é boa e agradável; todavia, depois da queda a humanidade ficou incapaz de satisfazer a vontade de Deus, e assim a lei se tornou para nós uma palavra de julgamento e ira. “Assim, a lei revela um duplo mal, um interno e o outro externo. O primeiro, que nós causamos a nós mesmos, é o pecado e a corrupção da natureza; o segundo, que Deus causa, é a ira, a morte e a maldição” (Contra Latomus, 3 – LW 32:224).

Colocando de outra maneira, a lei é o “não” divino pronunciado contra nós e contra toda realização humana. Embora a sua origem seja divina, ela pode ser usada tanto por Deus, conduzindo as pessoas ao evangelho, como pelo diabo, conduzindo-as ao desespero e ódio contra Deus. Isso se aplica não somente ao Antigo Testamento, mas também ao Novo e até mesmo às palavras de Cristo. Isso porque, se as pessoas não receberem o evangelho, as palavras de Cristo permanecem como uma exigência ainda mais rigorosa à torturada consciência humana. Em si mesma, a lei deixa os seres humanos numa situação de desespero e, portanto, torna-os joguetes do diabo. “Em meio à aflição e aos conflitos da consciência, o diabo costuma amedrontar-nos com a Lei e dirigir contra nós a consciência do pecado, nosso passado ímpio, a ira e o juízo de Deus, o inferno e a morte eterna, a fim de que dessa maneira possa levar-nos ao desespero, sujeitar-nos a si mesmo e arrancar-nos de Cristo” (Preleções sobre Gálatas, 1535 – LW 26:10).

No entanto, a lei é também o meio pelo qual Deus nos conduz a Cristo, pois quando ouvimos o “não” de Deus contra nós e contra os nossos esforços, estamos prontos para ouvir o seu amoroso “sim”, que é o evangelho. O evangelho não é uma nova lei, algo que simplesmente esclareça as exigências de Deus quanto a nós; não é um novo meio pelo qual podemos aplacar a ira de Deus. É o “sim” imerecido que em Cristo Deus pronunciou sobre nós. O evangelho liberta-nos da lei, não por capacitar-nos para cumprir a lei, mas ao declará-la cumprida por nós. “O evangelho não proclama nada mais que a salvação pela graça, dada ao homem sem quaisquer obras e méritos” (Sermão, 19-10-1522 – LW 51:112).

E todavia, mesmo dentro do evangelho e após termos ouvido e aceito a palavra de graça da parte de Deus, a lei não é inteiramente posta de lado. Embora justificados, somos ainda pecadores e a palavra de Deus ainda nos mostra a nossa condição. A diferença é que agora não precisamos nos desesperar, pois sabemos que, a despeito da nossa miséria, Deus nos aceita. Assim, podemos verdadeiramente nos arrepender dos nossos pecados sem tentar ocultá-los, quer negando-os ou confiando em nossa própria natureza.

Isso nos leva ao conceito de Lutero sobre a justificação – a imputação da justiça de Cristo. Se a justificação não depende da nossa própria justiça, mas da atribuição da justiça de Deus a nós, o cristão é ao mesmo tempo justo e pecador (“simul justus et peccator”). A justificação não significa que somos tornados perfeitos ou que deixamos de pecar (Romanos 7). Na sua vida terrena, o cristão irá continuar a ser um pecador, mas um pecador justificado e assim libertado da maldição da lei.

Isso não quer dizer que a justificação nada represente para a vida concreta do cristão. Ao contrário, a justificação é também a obra pela qual Deus, além de declarar-nos justos, também nos faz viver de acordo com esse decreto, conduzindo-nos à justiça. Portanto, “um homem que é justificado ainda não é um homem justo, mas está no próprio processo de mover-se em direção à justiça” (Disputa Acerca da Justificação – LW 34:152). Assim é a vida cristã: uma peregrinação da justiça para a justiça; da imputação inicial de justiça por Deus até o tempo em que seremos de fato tornados justos por Deus. Nessa peregrinação, as obras desempenham um papel importante, como um sinal de que a fé verdadeira de fato foi recebida. “Devemos confirmar a nossa posse da fé e do perdão dos pecados mostrando as nossas obras” (O Sermão da Montanha, Mt 6.14-15 – LW 21:149-50).

É nesse ponto que a lei – especialmente o Decálogo e os mandamentos do Novo Testamento – desempenham um novo papel na vida do crente. A sua função civil, que é necessária para a ordem da sociedade, ainda permanece. A sua função “teológica”, que é mostrar o nosso pecado, ainda é necessária, pois o indivíduo justificado ainda é um pecador. Mas, agora, o cristão se relaciona de maneira diferente com esse aspecto da lei. “Porém, agora eu descubro que a Lei é preciosa e boa, que ela me foi dada para a vida, e agora ela é agradável para mim. Antes ela me dizia o que fazer; agora estou começando a moldar-me aos seus apelos, de modo que agora eu louvo, engrandeço e sirvo a Deus. Isso eu faço por meio de Cristo, porque nele creio. O Espírito Santo entra em meu coração e gera em mim um espírito que se compraz nas suas palavras e obras, mesmo quando ele me repreende e me sujeita à cruz e à tentação” (Sermões sobre o Evangelho de João – LW22:144).

Assim, agora a lei tem uma função diferente, pois ela ao mesmo tempo repreende os pecadores que os cristãos ainda são e mostra-lhes o caminho a seguir no seu desejo de fazer o que é agradável a Deus. A razão que levou Lutero a insistir nesse uso da lei foi a afirmação feita por alguns entusiastas de que, como tinham o Espírito, eles não mais estavam sujeitos aos preceitos da lei. Lutero percebeu as conseqüências caóticas que resultariam de tal asserção e por isso a corrigiu dizendo que, embora o cristão não mais esteja sujeito à maldição da lei, a lei ainda é uma expressão boa e adequada da vontade de Deus. Isso diz respeito às leis morais expressas em ambos os testamentos, as quais se harmonizam com a lei natural e o princípio do amor, que é supremo no Novo Testamento.

2. Zuínglio e a Lei

Como resultado de seu enfoque diferente da teologia, o entendimento de Ulrico Zuínglio (1484-1531) acerca da lei e do evangelho não é o mesmo que o de Lutero. A sua resposta à questão da maneira pela qual a lei foi abolida, e do modo pelo qual ela ainda é válida, é muito mais simples que a de Lutero, carecendo da profundidade das idéias do reformador alemão. Zuínglio começa fazendo uma distinção entre três tipos de leis: a lei eterna de Deus, conforme expressa nos mandamentos morais; as leis cerimoniais e as leis civis. As duas últimas não se relacionam com essa questão, pois se referem à pessoa exterior, mas a questão de pecado e justiça tem a ver com a pessoa interior. Portanto, somente as leis morais do Antigo Testamento devem ser consideradas e elas de modo algum foram abolidas.

As leis civis dizem respeito a situações humanas particulares. As leis cerimoniaisforam dadas para a época anterior a Cristo. Mas a lei moral expressa a eterna vontade de Deus e, portanto, não pode ser abolida. O que aconteceu no Novo Testamento é que a lei moral foi sintetizada no mandamento do amor. O evangelho e a lei são essencialmente a mesma coisa. Portanto, aqueles que servem a Cristo estão presos à lei do amor, que é a mesma que a lei moral do Antigo Testamento e a lei natural escrita em todos os corações. Assim, o primeiro ponto, no qual Zuínglio difere de Lutero nessa questão, é a sua afirmação de que a lei permanece e de que o evangelho de modo algum a contradiz.

O segundo ponto de divergência entre os dois reformadores com referência à lei tem a ver com a sua avaliação da mesma. Zuínglio não passou pela experiência de sentir-se condenado pela lei, que foi tão decisiva para Lutero. Portanto, ele não pode aceitar a afirmação de Lutero de que a lei é terrível e que a sua função é pronunciar sobre nós a palavra de juízo de Deus. É clara a referência a Lutero quando Zuínglio afirma: “Em nossa época algumas pessoas de grande importância, como elas imaginam, têm falado sem a necessária circunspecção acerca da lei dizendo que a mesma serve somente para aterrorizar, condenar e entregar ao tormento. Na realidade, a lei não faz nada disso, mas, ao contrário, apresenta a vontade e a natureza da Divindade” (Sermão, 20-08-1530 – Lat. Zwingli 2:166).

Disso resulta o entendimento de Zuínglio acerca do evangelho, que é semelhante em muitos aspectos e diferente em muitos aspectos do de Lutero. Como Lutero, Zuínglio crê que o evangelho são as boas novas de que os pecados são remidos em nome de Cristo. Como o reformador alemão, ele afirma que esse perdão somente pode ser recebido quando a pessoa está consciente da sua própria miséria – embora ele atribua essa função ao Espírito antes que à lei. Ele afirma: “Seria ridículo se Aquele diante de quem está presente tudo o que jamais haverá, tivesse determinado libertar o homem a um tão grande preço e, no entanto, tivesse decidido permitir-lhe, imediatamente após a sua libertação, chafurdar nos seus velhos pecados. Portanto, ele proclama, desde o início, que a nossa vida e o nosso caráter devem ser transformados” (Sobre a Verdadeira e a Falsa Religião – Lat. Zwingli 3:119).

Portanto, em última análise, lei e evangelho são praticamente a mesma coisa. Isso resulta logicamente do entendimento de Zuínglio acerca da providência e da predestinação divinas. A vontade de Deus é sempre a mesma e foi revelada na lei. Assim, a função do evangelho é libertar-nos das conseqüências de nossa transgressão da lei e capacitar-nos a obedecê-la.

3. Calvino e a Lei

Quando Calvino fala em “lei”, ele geralmente dá a esse termo um sentido diferente daquele dado por Lutero. Para ele, a lei não significa o correlativo do evangelho, mas a revelação de Deus ao antigo Israel, tanto nos “livros de Moisés” como em todo o Antigo Testamento. Assim, a relação existente entre lei e evangelho, antes que dialética, torna-se praticamente contínua. Existem diferenças entre os dois testamentos, mas o seu conteúdo é essencialmente o mesmo: Jesus Cristo. Isso é de importância fundamental, pois o conhecimento da vontade de Deus seria inútil sem a graça de Cristo.

A lei cerimonial tinha em Cristo o seu conteúdo e fim, pois sem ele todas as cerimônias são vazias. A única razão pela qual os sacrifícios dos sacerdotes antigos eram aceitáveis a Deus era a prometida redenção em Jesus Cristo. Em si mesmos, dada a nossa corrupção, quaisquer sacrifícios que pudéssemos oferecer a Deus seriam inaceitáveis. Mas é na lei moral que se pode ver mais claramente a continuidade que existe entre o antigo e o novo. De fato, a lei moral tem um tríplice propósito.

primeiro propósito da lei – e aqui Calvino concorda com Lutero – é mostrar-se o nosso pecado, miséria e depravação (usus theologicus). Rm 3.20; 5.20. Quando vemos na lei o que Deus requer de nós, ficamos face a face com as nossas próprias deficiências. Isso não nos capacita a fazer a vontade de Deus, mas nos força a deixar de confiar em nós mesmos e a buscar o socorro e a graça de Deus (Institutas2.7.6-9). A lei é um espelho que mostra aos homens a sua verdadeira aparência aos olhos de Deus, para que “despidos e vazios eles possam correr para a sua misericórdia, repousar inteiramente nela, ocultar-se nela e apegar-se somente a ela para obter a justiça e os méritos disponíveis em Cristo para todos os que anelam e buscam essa misericórdia com verdadeira fé. Nos preceitos da lei, Deus é galardoador somente da perfeita justiça, e disso todos nós carecemos. Por outro lado, ele é o Juiz severo de todos os pecados. Mas, em Cristo, a sua face brilha plena de graça e suavidade mesmo para com pecadores miseráveis e indignos” (Institutas2.7.8).

segundo propósito da lei é refrear os ímpios (usus civilisInstitutas 2.7.10-11). 1 Tm 1.9-10. Embora, isso não leve à regeneração, é todavia necessário para a ordem social. Como muitas pessoas obedecem à lei movidas pelo temor, as ameaças que ela contém servem para fortalecer essa função. Sob essa rubrica, a lei também serve àqueles que, embora predestinados para a salvação, ainda não se converteram. Ao forçá-los a atentar para a vontade de Deus, ela os prepara para a graça à qual eles foram predestinados. Assim, muitos que chegaram a conhecer a graça de Deus testificam que antes da sua conversão sentiram-se compelidos a obedecer a lei movidos pelo temor.

Finalmente, o terceiro uso da lei – tertium usus legis – é revelar a vontade de Deus àqueles que crêem (Institutas 2.7.12). Sl 19.7-8; 119.105. Essa é uma ênfase que haveria de tornar-se típica da tradição reformada e que lhe daria grande parte da sua austeridade em matéria de ética. O próprio Calvino, com base nesse terceiro uso da lei, dedica uma extensa seção das Institutas à exposição da lei moral (Livro II, Cap. VIII). A sua afirmação básica é que Cristo aboliu a maldição da lei, mas não a sua validade. O erro do antinomianismo está em afirmar que, uma vez que Deus aboliu em Cristo a maldição da lei, os cristãos não mais estão obrigados pela lei. Na verdade, a lei não pode ser abolida, pois ela expressa a vontade de Deus, que nunca muda. O que foi abolido, além da maldição da lei moral, foi a lei cerimonial. A razão para isso é clara: o propósito das antigas cerimônias foi apontar para Cristo e isso não é mais necessário um vez que a realidade plena já foi revelada.

O “terceiro uso da lei” significa que os cristãos devem estudar a lei de modo cuidadoso, não somente como uma palavra de condenação que continuamente os impele para a graça de Deus, mas também como o fundamento para determinarem como devem ser as suas ações. Nesse estudo e interpretação da lei, três princípios fundamentais devem ser conservados em mente: (1) Deus é espírito e por isso os seus mandamentos dizem respeito tanto às ações externas quanto aos sentimentos íntimos do coração. Isso é verdade quanto a toda a lei e, portanto, o que Cristo faz no Sermão da Montanha é simplesmente explicitar o que já estava implícito, e não promulgar uma nova lei. A lei de Cristo não é outra senão a lei de Moisés (Institutas2.8.6-7). (2) Todo preceito é ao mesmo tempo positivo e negativo, pois toda proibição implica em uma ordem e vice-versa (Institutas 2.8.8-10). Assim, nada é deixado de fora da lei de Deus. (3) O fato de que o Decálogo foi escrito em duas tábuas mostra que a devoção e a justiça devem caminhar de mãos dadas (Institutas2.8.11). A primeira tábua trata dos deveres para com Deus; a segunda diz respeito às relações com o próximo. Assim, o fundamento da justiça é o serviço a Deus e este é impossível sem um relacionamento justo com as outras pessoas.

Portanto, existe uma continuidade fundamental entre o Antigo Testamento e o Novo (Institutas 2.10; 3.17). Essencialmente, essa continuidade tem a ver com o fato de que a vontade de Deus revelada no Antigo Testamento permanece eternamente a mesma, com o fato adicional de que o âmago do Antigo Testamento foi a promessa de Cristo, do qual o Novo Testamento fala como um fato consumado. Não obstante, existem algumas diferenças significativas entre os dois testamentos. Essas diferenças são cinco (Institutas 2.11): (a) O Novo Testamento fala claramente da vida futura, ao passo que o Antigo somente a promete por meio de sinais terrenos. (b) O Antigo Testamento apresenta apenas a sombra daquilo que está substancialmente presente no Novo, a saber, Cristo. (c) O Antigo Testamento foi temporário, enquanto que o Novo é eterno. (d) A essência do Antigo Testamento é lei e, portanto, servidão, ao passo que a essência do Novo é o evangelho da liberdade. Cumpre observar, todavia, que tudo o que é prometido no Antigo Testamento não é lei, mas evangelho. (e) O Antigo Testamento foi dirigido a um único povo, enquanto que a mensagem do Novo é universal. Porém, apesar dessas diferenças, a ênfase básica da reflexão de Calvino sobre lei e evangelho é de continuidade, e a diferença entre ambos é uma diferença entre promessa e cumprimento. Nisso, Calvino diferiu substancialmente de Lutero. E foi isso em parte que permitiu ao calvinismo articular programas éticos mais detalhados do que o fizeram os luteranos.

4. As Confissões Reformadas e a Lei

A ênfase de Calvino ao terceiro uso da lei fez com que os documentos confessionais reformados dessem grande destaque a esse ensino, especialmente através da exposição detalhada do Decálogo. Já no Livro II das Institutas, ao tratar da lei (capítulos 6-11), Calvino faz uma exposição detalhada dos Dez Mandamentos (8.11-50); o mesmo no seu primeiro catecismo, Instrução na Fé (1537).

A 2ª pergunta e resposta do Catecismo de Heidelberg (1563) diz o seguinte: “Quantas coisas deves conhecer para que possas viver e morrer na bem-aventurança desse consolo?  Três. Primeiro, a enormidade do meu pecado e miséria. Segundo, como sou liberto de todos os meus pecados e suas terríveis conseqüências. Terceiro, que gratidão devo a Deus por tal redenção.” Isso antecipa as três partes em que se divide o Catecismo: (1) O Pecado e a Culpa do Homem – A Lei de Deus (pp. 3-11): os dois primeiros usos da lei. (2) A Redenção e Liberdade do Homem – A Graça de Deus em Jesus Cristo (pp. 12-85): o evangelho. (3) A Gratidão e Obediência do Homem – A Nova Vida Através do Espírito Santo (pp. 86-129): a lei moral, especialmente o Decálogo (pp. 92-115).

Confissão de Fé de Westminster (1643-1646) dedica um capítulo à “Lei de Deus”, na parte que trata da vida cristã. Esse capítulo aborda em sete parágrafos os três usos da lei e os seus diferentes aspectos (cerimonial, civil e moral). Já o Catecismo Maiordá um destaque muito mais enfático à lei. A sua terceira parte (pp. 91-196) aborda o dever do homem em relação a Deus. Nessa seção, mais da metade das perguntas tratam da lei e do Decálogo (pp. 91-148). O mesmo se pode dizer do Breve Catecismo(pp. 39-84, de um total de 107 perguntas).

5. Antinomismo e Legalismo

Calvino e Lutero foram unânimes no seu entendimento dos primeiros dois usos da lei (elênctico, de élenchos = repreensão [ver 2 Tm 3.16], e civil ou político). Todavia, Lutero não ensinou formalmente um terceiro uso da lei. Os dois reformadores concordaram em suas noções sobre a graça, a justificação e a liberdade cristã, bem como em sua oposição contra qualquer forma de justiça pelas obras, por um lado, ou de antinomianismo, por outro lado. A diferença básica entre Lutero e Calvino no tocante à lei é que, para Lutero, a lei geralmente representa algo negativo e hostil; daí o fato de mencioná-la ao lado do pecado, da morte e do diabo. Calvino via a lei primariamente como uma expressão positiva da vontade de Deus, por meio da qual Deus restaura a sua imagem na humanidade e a ordem na criação decaída. Lutero estava consciente do terceiro uso da lei, mas ele não diz que a lei é principalmente um guia e um incentivo para os fiéis. Ele estava pronto a dizer, especialmente no início da década de 1520, que o crente de fato não precisava da lei. Isso explica em parte o fato de que o luteranismo tem tido de resguardar-se contra tentações antinomianas, ao passo que os círculos reformados têm revelado maior tendência de cair no legalismo.

Historicamente, tantos os luteranos como os reformados têm tido dificuldade de manter o correto equilíbrio entre lei e evangelho, o que tem levado ao antinomismo, de um lado, e ao legalismo e moralismo, do outro. O antinomismo acentua de tal modo o fato de o cristão estar livre da condenação da lei a ponto de subestimar a necessidade da confissão diária dos pecados e da busca sincera da santificação. Os católicos romanos com efeito acusaram a Reforma de antinomismo ao afirmarem que a doutrina da justificação pela fé conduziria à frouxidão moral. Já na década de 1530, Lutero expressou a sua preocupação pelo fato de um dos seus seguidores, João Agrícola (c. 1494-1566), ter se tornado antinomista. Lutero o criticou por não acentuar adequadamente a responsabilidade moral dos cristãos.

O perigo maior enfrentado pela Reforma foi o do moralismo e legalismo. Os moralistas ou neonomistas acentuam de tal modo a responsabilidade cristã que a obediência torna-se mais que o fruto ou evidência da fé; antes, ela passa a ser vista como um elemento constitutivo da fé justificadora. O legalismo inevitavelmente ataca a certeza e a alegria cristãs e tende a criar uma piedade egocêntrica, excessivamente introspectiva.

Era Calvino um legalista? Nos seus escritos, em geral não. Como vimos, ele estabeleceu normas para a interpretação da lei. Primeiro, a lei visa não somente a probidade externa, mas a justiça interior e espiritual (Institutas 2.8.6). Segundo, os mandamentos e proibições sempre implicam mais do que as palavras expressam, isto é, a mera obediência formal à lei não é suficiente (Institutas 2.8.8). Deve-se buscar a intenção do legislador; o melhor intérprete da lei é Cristo (Institutas 2.8.7). Terceiro, a dupla divisão da lei em deveres de piedade e deveres de caridade mostra que o temor a Deus é o fundamento da justiça (Institutas 2.8.11). Na sua teologia, a forte insistência de Calvino na justificação somente pela fé contrasta com o espírito legalista. Além disso, ele recusou-se a fazer da disciplina uma prova decisiva da existência da Igreja. Outro ponto significativo é o fato de ele ter colocado a exposição da lei no Livro II das Institutas (soteriologia), e não no Livro III, como parte da seção sobre o arrependimento e a vida cristã. Na discussão da vida cristã ele apela mais à vida e exemplo de Jesus e ao conjunto da teologia cristã como a fonte e o guia dessa vida.

Por outro lado, as Ordenanças Eclesiásticas (1541) criaram um consistório para regular a conduta da comunidade cristã e abriram as portas para o legalismo. Os oficiais de Genebra não hesitaram em forçar as pessoas a irem à igreja. Eles também investigavam e regulavam muitos detalhes da vida diária. Calvino tinha um desejo profundo de que a Igreja abrangesse toda a comunidade. Pelo menos no que diz respeito a Genebra, ele nunca abandonou o ideal medieval do corpus christianum, mas buscou fazer da comunidade de Genebra o verdadeiro corpo de Cristo. Porém, essa preocupação em obter a comunidade ideal pode ter levado o reformador a apelar para métodos legalísticos.

O desafio que se coloca diante de nós é duplo: dar um testemunho persuasivo da autoridade pessoal do Deus vivo sobre cada vida humana, mas ao mesmo tempo não substituir o reino pessoal de Deus por regras meticulosamente formuladas.

ReferênciasJusto L. González, A History of Christian Thought, III:53-55 (Lutero), 78-79 (Zuínglio), 146-49 (Calvino).

T.H.L. Parker, Calvin: An Introduction to his Thought (Louisville: Westminster/John Knox, 1995).

John H. Leith, John Calvin’s Doctrine of the Christian Life (Louisville: Westminster/John Knox, 1989), 45-54.

W.R.G, “Law and Gospel”, em S. B. Ferguson, D.F. Wright e J.I. Packer, eds., New Dictionary of Theology (InterVarsity, 1988), 379s.

I. John Hesselink, “Law”, em Donald K. McKim, ed., Encyclopedia of the Reformed Faith(Westminster/John Knox, 1992), 215-217.

Mauro F. Meister, “Lei e Graça: Uma Visão Reformada”. Fides Reformata IV:2 (Jul-Dez 1999), 45-58.

Timothy George, Theology of the Reformers (Nashville: Broadman, 1988). Um livro que aborda várias dessas questões é A Lei Moral, de Ernest Kevan, da Editora Os Puritanos. Por exemplo, o cap. 12 trata da importante relação entre a lei e o evangelho.


Fonte de Estudos e Pesquisas: http://www.mackenzie.br

sábado, 23 de junho de 2018

O valor da pessoa humana

UMA IGREJA, QUATRO PARTIDOS

UMA IGREJA, QUATRO PARTIDOS

(1 Co 1.10-12)

A Igreja do Senhor Jesus é descrita nas páginas sagradas do Novo Testamento por meio de figuras instrutivas que acentuam a natureza e a unidade do povo de Deus. É a Igreja apresentada como "corpo" (1 Co 12.12), "edifício" (1 Co 3.9), "templo" (1 Co 3.16), e "família" (Ef 2.19). Esses, entre outros emblemas, salientam a mais completa união entre todos os crentes. O apóstolo Paulo exorta a Igreja à unidade, à concórdia e à comunhão entre os irmãos. É uma lástima e também uma pedra de tropeço ver aqui e acolá os ditos salvos e santos em guerra uns contra os outros. Será que são a continuação dos “falsos irmãos” de Gl 2.4? É oportuno ler aqui v.7; 1 Jo 1.3,6,7.
Antes de exortar a igreja de Corinto, Paulo, com sabedoria, reconheceu e destacou as bênçãos divinas sobre aquela igreja e também o que havia de bom em seus crentes: 1) Eram “santificados em Cristo” (v.2); 2) chamados “santos” (v.2); 3) alvos “da graça de Deus” (v.4); 4) enriquecidos espiritualmente na palavra e no conhecimento (v.5); eles tinham todos os dons espirituais (v.7); 6) e a certeza da volta de Cristo (v.7).
1. O partido de Paulo: “Eu sou de Paulo” (v.12). O apóstolo foi o fundador da igreja em Corinto (At 18.8-11). Esse partido era o grupo dos “fundadores”, talvez, composto principalmente por gentios. Provavelmente, este grupo era formado pelos que se converteram através da pregação de Paulo. Lembremos que Paulo era o "apóstolo dos gentios" (Rm 11.13), entretanto, ensinava os crentes gentios a amarem a todos e a respeitarem a consciência dos mais fracos (1 Co 8.10-13).
2. O partido de Apolo: “Eu sou de Apolo” (v.12). Apolo era um servo de Deus, "eloquente e poderoso nas Escrituras" (At 18.24-28), que ministrou na cidade de Corinto depois da partida de Paulo para a Síria (At 18.18; 19.1). Era natural de Alexandria, Egito, um eficaz expositor das Sagradas Escrituras, e um fluente orador (At 18.28). O "grupo de Apolo", pode ter sido formado pelos elitistas, intelectuais, filósofos e sábios da igreja de Corinto (1 Co 1.20-23; 2.1-6; 3.18,19). Quando Paulo insistiu mais tarde para que Apolo fosse a Corinto, ele não atendeu a solicitação do apóstolo, talvez com receio que sua presença estimulasse ainda mais as divisões (1 Co 16.12). O partido de Apolo certamente era o dos intelectuais e teólogos da igreja local.
3. O partido de Cefas: “Eu sou de Cefas” (v.12). Cefas era o nome de Pedro no aramaico (Jo 1.42). Não há qualquer registro de que este apóstolo tenha ido a Corinto, mas seu renome como um dos três discípulos mais chegados a Cristo (Mt 17.1; Mc 5.37; 14.33), e "apóstolo dos judeus" (Gl 2.7,8) era conhecido por todos os cristãos. O "partido de Cefas", que dera muito trabalho a Paulo, era formado por judeus legalistas. Pedro, cheio do Espírito Santo, pregou no dia de Pentecostes, ocasião em que milhares de judeus se converteram e, certamente, muitos deles vindo de Corinto. Os componentes do “partido de Cefas” se ufanavam do fato de Cristo e os apóstolos serem de linhagem judaica. O partido de Cefas era o dos tradicionalistas, que conservavam os costumes em tempos de mudança.
4. O partido de Cristo: “E eu de Cristo” (v.12). Este grupo da igreja era exclusivista. Os partidários dessa facção se consideravam os únicos defensores do verdadeiro Evangelho e da graça. Eles não se submetiam a nenhum pastor humano. Só Cristo servia. Este partido era, sem dúvida, o mais nocivo dos grupos facciosos. Não aceitava a direção de qualquer autoridade eclesiástica. Acreditava que a igreja de Corinto estava em crise e que seus líderes não mereciam qualquer crédito. O "partido de Cristo" era uma igreja emergente dentro da igreja local. Considerava-se, para usar um neologismo, "crentes desigrejados".
Todos, entretanto, cometiam grave pecado contra a unidade do Corpo de Cristo. Os liberais, do partido de Paulo, achavam que podiam exercer a liberdade em Cristo acima da lei do amor (1 Co 13), – seu pecado era a libertinagem. Os legalistas, do partido de Pedro, erravam ao unir a lei com a graça (Jo 1.17; Rm 10.4; Cl 2.14) – seu pecado era unir duas alianças distintas. Os intelectuais, do partido de Apolo, com seu racionalismo filosófico, acreditavam que a lógica e a razão eram tudo o que precisavam para entender as coisas do Espírito – seu pecado era aceitar as escolas de pensamento humano em vez da revelação do Espírito. Os exclusivistas, do partido de Cristo, por causa do seu orgulho, carnalidade e imaturidade crônica, não se submetiam a nenhuma liderança pastoral – seu pecado era a insubordinação. Tais pecados continuam hoje a estragar e corromper crentes e suas respectivas congregações: libertinagem, legalismo, exclusivismo, dependência da sabedoria e capacidade humanas.
5. Na igreja ainda hoje, há "grupinhos" que costumam dividir e fracionar o povo de Deus. Não apresentam estes a mesmíssima natureza carnal e imaturidade dos crentes coríntios? Imaginemos uma congregação cristã tendo do seu lado de fora, na sociedade, uma pecaminosidade sem limite como a de Corinto, e, do lado de dentro, na igreja, dissensões, imoralidade, desordem no culto, práticas idolátricas e até embriagues. A expressão no versículo 10, “sejam unidos em um mesmo sentido”, no original é a mesma expressão “consertando as redes” em Mt 4.21. Redes rasgadas não recolhem peixe algum, a menos que sejam consertadas. Uma igreja despedaçada por divisões internas não tem como ganhar almas para Cristo, nem desfrutar do fluir da graça de Deus e do seu poder. O crédito não é do pregador, muito menos do mestre, mas do Senhor (v.7). Nem Paulo, nem Apolo têm a proeminência, mas Cristo. "Portanto, ninguém se glorie nos homens; porque tudo é vosso" (v.21).
6. Um alerta profético (vv.12-15). O fundamento da Igreja é a pessoa de nosso Senhor Jesus Cristo (v.11; Mt 16.18; 1 Pe 2.6). Todavia, Paulo, "como sábio arquiteto", pôs o "fundamento", mas outro "edificou sobre ele" (v.10). De que forma pôs o fundamento? Através da pregação de Cristo, crucificado e ressurreto. No versículo 9, na imagem da lavoura, Paulo lança a semente e Apolo rega. No versículo 10, na metáfora do edifício, Paulo põe o fundamento e Apolo edifica. A semente é a mensagem da cruz (1 Co 1.28, 23; 2.1-4), o alicerce, o próprio Cristo, e a lavoura e o edifício são símbolos da Igreja. Os verbos "edificar" e "regar", por outro lado, referem-se à continuidade das operações ministeriais que conduzem a Igreja ao crescimento e maturidade espirituais.
Porém, o apóstolo alerta: "Veja cada um como edifica sobre ele" (v.10). Esta admoestação é de caráter profético: "o Dia a declarará" (v.13). Paulo refere-se ao tribunal de Cristo, que galardoará cada um "segundo o seu trabalho" (v.8). As obras edificadas sobre este inamovível fundamento são de dois tipos: perecíveis e imperecíveis. As perecíveis não resistirão ao julgamento divino representado pelo fogo: madeira, feno, palha; enquanto as imperecíveis resistirão ao juízo celestial: ouro, prata e pedras preciosas (v.12). Contudo, "se a obra de alguém se queimar, sofrerá detrimento; mas o tal será salvo, todavia como pelo fogo" (v.15).
7. O templo de Deus e a verdadeira sabedoria (vv.16-23). Anteriormente, Paulo ilustrou a igreja por intermédio das imagens do edifício e da lavoura (v.9), agora, emprega a figura do templo (vv.16,17). O Novo Testamento emprega dois termos para templo: hierosusado para descrever todas as áreas do templo; e naos, especificamente, o santuário, a morada da divindade. Nesta passagem Paulo usa naos para designar que a Igreja é o lugar vivo da presença divina. O "templo de Deus" é a comunidade dos redimidos habitada pelo Espírito Santo (vv.16,17). Não há divisões quando Cristo governa a Igreja.

Portanto, a sabedoria deste mundo não é capaz de compreender as ministrações do Espírito Santo na Igreja, pois em vez de o homem se submeter humildemente à sabedoria divina, fica enfatuado na glória efêmera, transitória da mortalidade. Todavia, tudo pertence ao crente espiritual, pois todas as coisas se convergem em Cristo (v.22,23).
Por conseguinte, o partidarismo na igreja enfraquece e combate a unidade do Espírito pelo vínculo da paz (Ef 4.3). Cada crente é responsável por preservar a comunhão e a unidade cristãs. A vontade de Cristo é que, todos, sem exceção, cheguem à perfeição desta dádiva celeste (Jo 17.23).

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